segunda-feira, 13 de junho de 2016

Trabalho em tempos de colonialismo

Quem tece a história de um país, e quem define o que é História? Não há países descobertos, ninguém deles tirou um véu. A História de nações como Brasil ou Angola começam muito antes das naus portuguesas aportarem em suas praias, e o resultado do encontro é uma colagem estranha, muitas vezes bruta, muitas vezes bela, do que choques sociais e étnicos fizeram aos povos que sempre estiveram e aos que chegaram. Pensar-se indivíduo e pensar-se sociedade, em cada país, não é possível sem levar em conta essas heranças.
Para tocar na superfície de entendimento sobre particularidades do trabalho infantil em países colonizados por Portugal, é preciso antes entender as noções de trabalho criadas em paralelo à colonização. O professor Ricardino Teixeira, doutor em Sociologia e membro da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) explica que os processos colonizadores variaram conforme os países. Quando uma sociedade era regulamentada pela legislação colonial, inevitavelmente surgia uma hierarquização: dos grupos que eram considerados assimilados, porque adquiriam certos costumes da cultura lusófona, e os considerados indígenas, que viviam sobre um conjunto de leis não formalizado, o direito consuetudinário.
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), formada por nove nações (Angola, Brasil, Moçambique, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Timor-Leste, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Portugal), surgiu em 1996 como "foro multilateral privilegiado para o aprofundamento da amizade mútua e da cooperação entre os seus membros". E elegeu 2016 como o “Ano da CPLP Contra o Trabalho Infantil”. É por esta trilha que a reportagem seguirá, percorrendo a história e destacando o debate sobre o trabalho infantil em cada localidade. 
A hierarquização social nesses países levou à estrutura de trabalho forçado e exploração. Teixeira, que é doutor em Sociologia tem larga experiência em trabalhos sobre movimentos sociais africanos – em especial os realizados em Cabo Verde e Guiné-Bissau –, traz o caso de São Tomé e Príncipe para exemplificar: “Havia trabalho forçado em plantação e recolha de cacau para o mercado internacional”. No caso de Cabo Verde, complementa o professor, embora não houvesse necessariamente trabalho forçado, acontecia a deportação de indivíduos para lavouras em países da América Latina ou Estados Unidos.
Os agressivos processos de colonização deixaram rachaduras ainda sentidas anos após a conquista da independência. Os ecos então presentes no lento desenvolvimento econômico das regiões e também nos baixos índices de desenvolvimento humano. Isso potencializado por recentes processos de globalização a fim de lucro rápido, não levando em conta os fatores humanos do território. Cria-se, assim, uma situação de vulnerabilidade social, na qual crianças e jovens deixam de aproveitar sua infância.
Mas isso leva à pergunta: que infância? O que é a infância para cada país?
As muitas infâncias
Declaração dos Direitos da Criança, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1959, é uma diretriz básica para aplicação de programas de proteção à infância, incluindo afastá-la de qualquer prática de trabalho infantil:“a criança será protegida contra qualquer crueldade e exploração. Não será permitido que ela trabalhe ou tenha ocupação que prejudique os estudos ou a saúde”, ressalta o documento.

Entretanto, não se pode ignorar que seja uma diretriz ocidental, e que outras partes do mundo convivem com conceitos diferentes do que seria a infância e do que ela significa no período de desenvolvimento do ser humano. “A concepção que predomina é a das agências internacionais, mas o conceito não dá conta. A percepção do que é a criança varia de etnia para etnia, de cultura para cultura. Então é difícil trabalharmos a categoria criança para entender o contexto do outro”, explica o sociólogo.
Mesmo porque o próprio conceito da infância é recente, o que não se restringe a países africanos ou colonizados como o Brasil. “No caso da Europa, meninos e meninas trabalhavam dentro de fábricas. Não eram vistas como crianças”, diz Teixeira. O especialista faz questão de salientar os perigos de se criar abismos entre países, como se só em Guiné-Bissau crianças trabalhassem ou como se só em Portugal elas não o fizessem. “Não podemos dar a esse fenômeno uma perspectiva meramente ocidental.”
Embora a maior parte dos países que compõe a CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) seja do continente africano, também se faz necessário combater o conceito de que exista um estereótipo de criança africana, uma infância representativa do continente. “Cada país tem sua percepção: Na Guiné-Bissau, por exemplo, a criança entra na dinâmica do capital muito rápido. Já em outras etnias e grupos há uma preservação muito forte – a criança tem que passar por um processo de amadurecimento para depois se inserir no mercado de trabalho ou matrimônio.”
Na feitura de qualquer pesquisa ou construção de uma ideia de trabalho infantil por parte de organizações não locais, sugere Ricardino Teixeira, o trabalho deve ser em conjunto com os agentes e articuladores de cada país, pois são eles que melhor conhecem o que desejam transformar. O que não é, de modo algum, deixar de ter criticidade para o problema de trabalho infantil: é levantá-lo não levando somente em conta a perspectiva ocidental, mas também moçambicana, timorense ou cabo-verdiana. “Temos que ir a esses países perguntar: ‘O que é a criança para vocês? A partir de que momento essa menina começa a trabalhar? Trabalha para quem?’. A dinâmica é muito mais intensa e mais diversa do que imaginamos.”.
Trabalho infantil em países lusófonos e o que tem sido feito para combatê-lo
Respeitar as individualidades culturais de uma nação não é compactuar com os abusos sofridos por crianças e adolescentes sujeitos à vulnerabilidade econômica e social. O trabalho forçado e a exploração pelos quais países como Brasil, Guiné-Bissau e Angola foram sujeitados ainda trazem consequências no tocante ao trabalho infantil em seus territórios, numericamente expressas em cifras alarmantes de crianças ocupando-se com extração de minérioslixões,agriculturacarvoariastrabalho doméstico, além do comércio informal. Não só somente os processos colonizadores, mas práticas tradicionais também contribuem para índices como os da Guiné-Bissau, em que 38% das crianças trabalham.

“Há elementos endógenos e exógenos; os endógenos têm relação com a hierarquização social do sistema colonial; já o elemento exógeno diz de estruturas locais que existiam anteriormente à presença europeia”, explica o professor, que volta à Guiné-Bissau e sua forte tradição secular como exemplo. “Em algumas regiões, o Alcorão é interpretado de modo onde crianças tem condição de pedinte, o que justificaria o uso delas para esmolar nas ruas”.
Existe, ainda, um terceiro elemento, atrelado aos dois primeiros, galopando não só pelos países africanos como também em outras nações emergentes. “A expansão do mercado de capital internacional, em que crianças, por serem mais sujeitas, acabam sendo apropriadas indevidamente. Elas são vistas como mercadoria, no sentido de indivíduos que produzem certo tipo de capital, mas sem fazer parte nem se beneficiar de sua estrutura”.
Contudo, é importante lembrar que há interessantes movimentações no combate à exploração de mão de obra infantil nas regiões abarcadas pela CPLP. “Tem havido um movimento interno muito forte em condenar e denunciar essas práticas, particularmente em razão dos processos de democratização desses países e pela expansão de novas forças sociais”, diz Teixeira, que enxerga duas frentes distintas: a primeira delas parte de ONGs internacionais, articuladas por seus Estados e mantidas financeiramente por instituições também estrangeiras. A outra é a mobilização das estruturas locais familiares, que tem se comprometido com resolução de conflitos e manutenção dos direitos infantis.
“Essa segunda dinâmica me parece mais eficiente. Tem seus problemas, marcados por certas práticas tradicionais, mas é impulsionada pela jovem população africana. Os jovens são fortemente impactados pela comunicação de massa, do ponto de vista negativo, mas também no positivo, afrouxando tradições – não as aniquilando”, completa o sociólogo. 

Fonte: Portal Pró-Menino

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