sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Quanto menor a idade, maior a exploração



Queimaduras, unhas amassadas na porta e a língua cortada com um alicate são as marcas que Lucélia Rodrigues da Silva carrega do tempo em que foi torturada dentro de um apartamento de luxo na capital goiana. Ela tinha apenas 10 anos quando saiu da família para morar com uma empresária. As promessas de estudo, roupas, presentes e uma vida melhor começaram a se dissipar logo. Em pouco tempo, Lucélia passou a fazer os trabalhos da casa, ao mesmo tempo em que era agredida. O caso mostra, de uma forma extrema, as consequências de um problema não apenas tolerado, mas estimulado pela sociedade: o trabalho infantil doméstico. Embora a violência suportada por Lucélia, hoje com 17 anos, não atinja todas as 257 mil crianças e adolescentes brasileiros ocupados nesse segmento, os prejuízos são incalculáveis.

“Muitas famílias pegam a criança ou a adolescente para pagarem menos que o salário mínimo, não assinarem carteira. E ainda tentam dar ao gesto um caráter nobre, dizendo que estão ajudando a menina”, critica Antonio de Oliveira Lima, procurador do trabalho no Ceará. Ele não ignora a situação de pobreza de muitas trabalhadoras infantis, defende escolas em tempo integral e outras políticas públicas e condena a conivência de quem explora essa mão de obra. “É um trabalho que se dá com 100% de prejuízo do direito fundamental que é a convivência familiar e comunitária, as garantias trabalhistas não são respeitadas, sem falar no risco de assédio moral e sexual e de abandono escolar. Fora que muitos trabalhadores domésticos, mesmo os adultos, não são tratados como seres humanos”, completa.

Mais passíveis de terem os direitos desrespeitados, as trabalhadoras de pouca idade padecem de um outro problema que também aflige parte da categoria já adulta: a falta de uma jornada de trabalho regulamentada — ao contrário das outras profissões que têm carga máxima estabelecida em 44 horas semanais. Um quarto das domésticas brasileiras ultrapassam esse limite, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sem ganharem nada a mais por isso porque também não têm direito a horas extras ou adicionais noturnos. “O que ocorre é uma autorização estatal para o subemprego”, afirma o sociólogo Joaze Bernardino Costa, professor da Universidade de Brasília.

A justificativa dos legisladores, desde a concepção da Constituição de 1988, que negou às empregadas tais direitos, era de que o trabalho doméstico, ao contrário de outros, não tem caráter lucrativo, como uma empresa. O argumento, porém, é cada vez menos considerado, o que levou à aprovação unânime de uma proposta de mudança constitucional na última semana em comissão da Câmara dos Deputados. “O discurso não tem a ver com lucratividade, e sim com uma postura discriminadora e machista. Muita gente quer ser servida, mas não quer pagar de forma justa pelos serviços de quem cuida dos filhos, dos idosos, dos animais e dos seus bens patrimoniais”, afirma Creuza Maria Oliveira, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad).

Fome
Elisa (nome fictício), uma doméstica de Coroatá, leste do Maranhão, sabe o que é não ter hora para trabalhar. Quando foi para uma casa em Teresina, onde olhava um bebê e ajudava na limpeza, só tinha folga de 15 em 15 dias. Mas se dava bem com os empregadores. O problema era nos fins de semana, na casa da sogra da patroa, que lhe chamava às 6h. “Ela me acordava com o dia clareando. A criança ainda estava dormindo, mas eu tinha que levantar para arrumar a casa dela. Chorava muito nesse tempo, ela me tratava mal. Só que eu aguentava”, lembra Elisa.

A moça de 26 anos fala que a pior recordação do período diz respeito à hora das refeições. “Eu só comia depois que todo mundo comesse. E eram sempre as sobras, comida fria, horrível mesmo. A quantidade, eles que colocavam. Passei muita fome lá”, afirma Elisa. Sete meses depois, ela pediu para ir embora. Sem carteira assinada, saiu com uma “mão na frente e outra atrás”. Encorajada por uma amiga que estava em Brasília, embarcou rumo à capital em um ônibus de turismo. “Pedi R$ 200 emprestados a um amigo. Deixei com ele o cartão do Bolsa Família dos meus filhos por garantia. Mas antes de um mês aqui, já tinha quitado minha dívida com ele”, conta Elisa.

Desde 2000 no Distrito Federal, Elisa está feliz. Mas nem tudo foram flores para a maranhense. Depois de trabalhar durante um ano fichada para uma família em um condomínio de classe média próximo ao Plano Piloto, decidiu sair, por não querer continuar dormindo no serviço. A patroa, então, fez as contas, adiantou cerca de R$ 1 mil dos R$ 2,2 mil que devia e pediu que ela assinasse um papel dizendo ter recebido tudo.

Elisa aceitou. “Eu ia viajar para ver meus parentes, precisava do dinheiro. Além do que, confiava que eles iam me pagar. Quando o restante não chegou na minha conta, comecei a ligar. Mas aí ela (a patroa) disse que estava sem condição, que não tinha de onde tirar. Depois disso, eles me pagaram algumas parcelas, mas não tudo. Desisti de cobrar o pouco que resta. Levei um calote mesmo, mas não tenho raiva deles”, diz a mulher, que atualmente trabalha em outra casa de família, no Guará.


Fonte: Portal Pró-Menino

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